segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Quando o melhor se corrompe


Imagem: "A melodia ácida", de Joan Miró.

No primeiro ano da Revolução o apoio popular era quase total. Eu tinha então dez anos e recordo o júbilo dos primeros dias. Havia terminado a ditadura, o tirano havia fugido; tudo era esperança. Nesse mesmo ano de 1959 se promulgou a Lei de Reforma Agrária (que terminou sendo a primeira , pois logo viria uma segunda lei) e o apoio quase unânime continuou. Aquele passou a ser o tema do momento na mídia e entre o povo. A terra iria ser para o camponês. Finalmente aquela grande aspiração da nação cubana ia-se cumprir e o entusiasmo não diminuía.

Recordo que no meu povoado, San Luis em Pinar del Rio, a praça entre a igreja e o parque encheu-se de arados, moedoras de grãos, outros implementos agrícolas e um trator. Eram doações espontâneas de comerciantes e outras pessoas abastadas. Ia bem avançado o ano de 1959, comecei a escutar as primeiras palavras de dúvida, muito tímidas no princípio. Um amigo da família parava para conversar e as discussões daquele momento eram mais ou menos nestes têrmos:

- Ouça, como tu dizes isso? Como Fidel Castro vai ser comunista? Quem pensa assim se esse rapaz é filho de uma família rica, educado por padres e advogado?

- Ouça, olha que estão colocando os comunistas nos postos chaves, dizia o céptico.

- Porém se ele mesmo disse que não é, replicava o outro.

Já no ano seguinte todos sabiam que o "céptico" tinha razão que o povo havia sido enganado. Porém até aí quase todos haviam olhado com simpatia a Revolução: a igreja católica, os norte americanos, os ricos e toda a imprensa. Inclusive já se havia levado a cabo um bom número de fuzilamentos espúrios e que foram denunciados fora de Cuba, de uma forma ou outra o povo os havia justificado. No país o critério da maioria era o que fazia falta à uma Revolução. O maior motivo de desgosto entre a população era que os governantes e outros políticos se enriqueciam com o dinheiro do erário.

Com o apoio inicial que a Revolução teve, se houvesse seguido o caminho prometido de reinstaurar a democracia e eliminar a grande corrupção governamental, Cuba haveria podido se converter num país muito próspero e - mais importante ainda - de uma grande riqueza moral e humana que teria podido servir de exemplo à todas as nações irmãs da Iberoamérica. Tudo isso sob um governo legitimamente constituído por Fidel Castro, que de todas as formas havia sido a grande figura nacional e havia governado quase sem oposição e sem ter que reprimir ninguém. Porém a Revolução de 1959 nasceu sobre essa grande mentira que ofuscou tudo.

Olhando o acontecido da comodidade da retrospectiva, creio que todas as más decisões daqueles primeiros anos estiveram assinaladas por esse pecado original. Do momento mesmo dos fuzilamentos dos batistianos, que começaram desde o primeiro dia. Não duvido que entre os fuzilados haviam assassinos e torturadores, porém porque não conceder-lhes a oportunidade de um julgamento justo (piores, sem dúvida, haviam sido os nazistas na Segunda Guerra Mundial e os julgamentos de Nuremberg estavam muito frescos na memória coletiva. Alguns daqueles comandantes, inclusive, saíram absolvidos, outros condenados à prisão e outros mais à pena de morte) mais ainda sendo advogado o líder da Revolução triunfante. Como não concedeu à seus antigos inimigos um julgamento verdadeiro? Inclusive frente uma corte internacional. Que exemplo haveria sido um processo como esse para nosso povo! Quanto haveríamos ganhado em civilidade! Quanto haveria sido prestigiada uma revolução que se declarava humanista e cuja generosidade havia sido proclamada do tribunal! Quantas figuras do melhor da humanidade haveriam saído em apoio à tal decisão!

Contudo pesou mais na mente daqueles líderes jovens a opção de matar, estimo que para seguir radicalizando a Revolução e além disso para ir semeando o terror e eliminando possíveis futuros inimigos. Inclusive aquelas medidas iniciais que beneficiaram amplos setores, estiveram marcadas pela pressa. Fidel Castro foi muito habilidoso em tomar medidas de amplo apoio popular, enquanto acumulava parcelas de poder estratégicas e desenvolvia uma retórica inflamada.

Entendo que tudo poderia ter sido feito melhor, com mais serenidade. Ter beneficiado os mais humildes de todas as formas, porém sem inimizar-se com ninguém. Um acerto foi a campanha de alfabetização. Quem vai se opor a que se alfabetizem os iletrados? Porém para que havia que se dar o prazo de um ano para essa tarefa e levar adolescentes afastados de sua família à lugares que já em 1961 eram perigosos? O mesmo poderia se haver conseguido com muito mais calma e racionalidade. Claro que assim se haveria perdido um tanto o efeito propagandístico.

A traição chegou até a reforma agrária. Depois desta, promulgou-se uma segunda lei que mudou o caráter da primeira. Já os camponeses não iriam ser os donos da terra, senão assalariados de imensas granjas estatais. O latifúndio havia mudado de dono. Anos depois, sendo eu estudante universitário (era obrigatório cursar e ser aprovado na matéria de Marxismo-Leninismo) lembro que um dia uma professora de marxismo, que naqueles tempos era como pronunciar o juízo inapelável da sabedoria, suponho que esta seria a explicação oficial e não nenhuma outra anterior. Ela nos disse que entregar a terra à um campones era convertê-lo num inimigo de classe. Na minha mente veio um homem do campo sem terra, convertido em próspero campones, fazendo produzir um sítio de sua propriedade, com uma boa casa e um automóvel. Porém esse sonho era converter o pobre em burgues, num inimigo ideológico, num "inimigo do povo".

Em resumo, com o triunfo revolucionário Fidel Castro teve em suas mãos a oportunidade dourada de ter conduzido este povo pelo caminho da paz e democracia. À uma grande prosperidade bem dividida e uma civilidade harmoniosa, para que se fizesse realidade a máxima martiniana "COM TODOS E PARA O BEM DE TODOS". Preferiu, ao invés disso, seguir pela rota do enfrentamento e do comunismo, uma ideologia alheia a nossa história ao nosso ambiente e essencialmente violadora dos direitos humanos. Esta jogada lhe permitiu governar com poder totalitário. Qual foi o resultado? Aquela economia próspera terminou convertida num país em ruínas, um povo muito unido como o cubano está hoje mais dividido do que nunca, não só por questão de opiniões senão também geograficamente separado e dispersas as esperanças juvenis.

Poderia ter sido um grande libertador e preferiu converter-se no manda-chuva de uma tirania de cinquenta anos. Nada; realizou-se para nós o que os antigos romanos já sabiam: quando o melhor se corrompe, resulta o pior (CORRUPTIO OMNIMI, PESSIMA).

Adolfo Fernández Sainz, prisioneiro de consciência, prisão de Canaleta, Ciego de Ávila.

(O autor faz 61 anos hoje, 30 de novembro)

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Um comentário:

  1. Parabéns Adolfo f Sains pela avaliação lúcida e verdadeira. Liberdade para os presos políticos de Cuba.

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